Sunday, December 10, 2006

O Tesouro dos Cantos


Sarahapa

Instruções esotéricas sobre o Mahamudra
Por Sarahapa - Do livro: LA SIMPLICITÉ DE LA GRANDE PERFECTION - Textos traduzidos do tibetano e comentados por James Low. Tradução para o português; karma tempa dhargy

Introdução

Este texto de Saraha sobre o Mahamudra tem um estilo mais formal que o de Maitripa. É composto por três seções sobre assuntos tradicionais da base, da via e do resultado.

[...] Ele aborda o dilema essencial quando declara que a verdadeira natureza "não pode ser demonstrada, ela é inexprimível e nada pode apreende-la de maneira dualista". A experiência de integração está além da expressão e, portanto a energia desta experiência derrama-se como uma onda de compaixão espontânea para ajudar os seres.

Se a verdade é inexprimível, os ensinamentos, por sua própria natureza, não serão aproximativos, talvez falsos? A afirmação familiar de não confundir o dedo que aponta a lua com a própria lua nos vem à mente. Temos necessidade do dedo para ajudar-nos a encontrar o caminho, mas tendo encontrado o dedo, é muito tentador, porque é muito tranqüilizador, passar sua vida a medi-lo, examina-lo, a tornar-se um "dedólogo" diplomado. Como disse Budha Shakyamuni, temos necessidade de um barco para o rio mas não é útil transporta-lo consigo uma vez do outro lado. Os tântricos observam que as coisas que prendem as pessoas comuns podem tornar-se os meios de liberação para um yogui; semelhantemente, as instruções que conduzem à liberação podem ser os meios de confusão para aqueles que a elas se apegam.

Neste texto, como nos outros, o estilo é de uma exposição experimental. Ele nos mostra como são as coisas (a base); como entrar em contato com isso (a via); e como permanecer aí sem apego (o resultado). Não há discussão nem debate – não se trata da apresentação de uma tese, mas de uma revelação. Esse estilo de discurso, que se assemelha a um sutra, oferece à mente poucas facetas com as quais possamos jogar: somos inspirados e começamos a praticar, ou não somos tocados e o deixamos de lado. E isso, seguramente, como nos diz Saraha, é justamente como é preciso que seja.

Saraha fala claramente de uma via de conhecimento, de compreensão direta. Ele não fala de experiências místicas ou alguma coisa estranha, mas de resultados obtidos pela aplicação de uma metodologia simples. Não há nada de particular a fazer, somente olhar claramente o que é. Assim, tomando o exemplo do céu, diz: "Mesmo se examinarmos a mente e todos os fenômenos de um lado a outro, não seremos capazes de encontrar apenas um único átomo de existência verdadeira". Tendo feito nós mesmos o trabalho, o resultado da clara compreensão é-nos inalienavelmente adquirido.

O texto

Homenagem à Sri Vajra Dakini.
Homenagem às Três Jóias cognição primordial co-emergente.
O sentido deste texto será dado em três seções.
A primeira seção é o ensinamento da condição natural do Mahamudra.
Isso comporta três aspectos.

1. Primeiramente, a explicação de como são as coisas.

Tudo o que se move ou não se move1, tudo o que estável ou instavel2, tudo o que é material3 ou imaterial, tudo o que se apresenta como aparência e tudo o que não se apresenta como aparência – tudo isso, sem exceção, nunca separou-se e não se separará jamais da natureza semelhante ao céu. E mais, ainda que utilizemos o termo "céu" para se referir ao céu, o céu em si-mesmo não tem nenhuma natureza específica individual. Ele está totalmente além do fato de ser um objeto ao qual podemos aplicar conceitos delimitantes como "é", "não-é", "sem existência" e "sem não-existência", e tudo mais. Semelhante, ao céu, a mente e a realidade verdadeira4 não têm entre elas nenhuma diferença. Todos os nomes que indicam uma diferença não passam de títulos adventícios5, inopinados. Eles não têm validade e não são mais que palavras descritivas. Tudo está em nossa própria mente.

Fora de nossa mente, não há um único átomo do que quer que seja. Alguém que realize que desde o início, não há mente existindo enquanto entidade, obteve a excelente compreensão de todos os Budhas dos três tempos.

O que é bem conhecido como "cornucópia6 natural" não é uma idéia falsa suplementar, porque desde o início, é a natureza co-emergente7. Esta natureza não pode ser demonstrada; ela é inexprimível e ninguém pode compreende-la de um modo dualista. Se há um possuidor, haverá então possessões. Mas, se desde o início, não há um eu, quem pode possuir esse não-eu?.

Se a mente é uma coisa real que possuímos, todos os fenômenos serão então também reais e passíveis de apropriação. Se não há mente, quem compreenderá o que é "alguma coisa"?.

Não podemos encontrar a mente e todos os pensamentos que podemos perceber ao buscá-los – e o buscador em si mesmo não pode ser encontrado. Nem aquele que sabe nem o que é sabido existem enquanto tais e entretanto eles são sem nascimento e sem fim no passado, presente e futuro. Isso não muda porque é a condição natural da grande satisfação inata. Por esta razão, todas as aparências são o modo natural. Todos os seres sensíveis são Budhas. Toda construção e toda atividade estão, desde o início, no céu que engloba tudo. Todas as coisas que são identificadas pela linguagem e conceitos são como os chifres de um coelho.


2. Onde mostramos como os seres tornam-se confusos porque não realizam esta realidade.

Ai! Quando o sol não é obscurecido pelas nuvens, seus raios se espalham em tudo, entretanto aqueles que não tem olhos permanecem nas trevas perpétuas. A co-emergência espontânea está presente em tudo, mas aqueles que são estúpidos estão muito afastados dela. Como os seres não compreendem que a mente não é uma entidade, eles prendem solidamente a natureza original da mente na discriminação e no julgamento conceitual. Então, assim como as pessoas tornam-se loucas pelas "bênçãos" de um demônio, os seres tornam-se impotentes, vazios de sentido e criam seu próprio sofrimento.

1. Isso se refere a tudo o que é animado ou inanimado.

2. Isso se refere a mente e aos eventos mentais.

3. Quer dizer o que "existe" e o que "não-existe".

4. Chos-Nyid, dharmata.

5. Eles são somente convencionais e não têm conexão inerente com o objeto que supomos que eles representam ou aos quais supomos que eles se referem.

6. Chos-Kyi Za-Ma-Tog.

7. Da claridade e da vacuidade.

Acreditando que as coisas são reais, os seres são capturados pelo grande demônio dos pensamentos e, assim, somente criam sofrimentos insensatos para eles mesmos. Alguns desses seres estúpidos estão ligados pelas discriminações de seus intelectos. Eles guardam o mestre (quer dizer a mente em si mesma) em casa e vão buscá-lo longe. Alguns dentre eles crêem que os reflexos são reais. Alguns não cortam a raiz, mas somente os ramos e as folhas. Pouco importa o que façam, eles não são conscientes de estarem iludidos1.

3. Terceiro, mostramos a Via na qual os ermitãos obtêm a realização.

Maravilhoso! Os seres semelhantes às crianças não conhecem sua própria natureza verdadeira, mas eu a realizo não me desviando nunca do estado desta verdadeira natureza. Obtive o conhecimento do começo e do fim (quer dizer, da totalidade) de mim mesmo, e assim eu me vejo: minha verdadeira natureza é e permanece pura (ela não está misturada a nada, ela não depende de nada). Entretanto, ainda que tenhamos a experiência desta pureza (Ka-Dag), esta não é percebida como fortemente real. Não há um observador nem alguma coisa a observar, também isso é inexprimível. E como ela é inexprimível, quem pode conhece-la2?

Quando praticam a mente imutável, vocês penetram na realização que eu, o eremita, tenho. O leite de uma leoa das neves não pode estar contido em um pote de má qualidade. Quando o leão ruge na floresta, todos os pequenos cervos ficam apavorados, mas os leõezinhos estão felizes e continuam a correr em torno de sua mãe. Do mesmo modo, quando é ensinada a grande satisfação que é inata desde o início, as pessoas estúpidas que mantêm falsas idéias ficam apavoradas, mas os seres afortunados tornam-se felizes e os pelos de seus corpos vibram.

1. Quer dizer que eles não se dão conta do erro subjacente.

2. Quer dizer conhece-la da maneira como um sujeito conhece um objeto, porque esse tipo de conhecimento depende de conceitos exprimíveis.

A segunda seção trata dos três aspectos da Via do Mahamudra

1. Determinar-se claramente quanto à Base da Via – a segunda seção trata dos três aspectos da Via do Mahamudra:

Primeiramente, a natureza da Via será mostrada.


Maravilhoso! Olhem com uma mente imóvel. Se vocês mesmos realizarem sua própria natureza, a mente móvel emergirá igualmente enquanto Mahamudra. No estado de grande satisfação, todas as características dualistas se liberam por si mesmas. (auto-liberação)

Quando despertamos de um sonho, vemos que todas as alegrias e sofrimentos não têm substância verdadeira. Também abandonem todo pensamento de esperança ou de dúvida, porque o que existe aí para pensar em inibir ou encorajar?

‘Vendo’ a verdadeira natureza, reconhecemos que todas as coisas no samsara e no nirvana são desprovidas de natureza própria individual e por esse fato, nossos pensamentos de esperança e de dúvida evaporam-se. Quem fará esforços para abandonar ou aceitar? Cada aparência e cada som são como uma ilusão mágica, uma miragem ou um reflexo – eles são livres de características das entidades que parecem reais. Quem compreende a natureza ilusória das aparências, é a natureza da mente em si mesma, e ela é semelhante ao céu. Esta verdadeira natureza não tem centro nem limite, então quem seria capaz de compreende-la?1. Existem numerosos rios diferentes como o Ganges, etc., mas quando eles atingem o mar salgado, têm todos um mesmo sabor. Igualmente, a mente discriminante, todas as suas funções e seu conteúdo devem ser conhecidos como tendo um mesmo sabor no campo da realidade.

Segundo, mostrar o método da realização.

Se alguém examina completamente toda a extensão do céu, verá que este não tem centro nem fim, também ultrapassará definitivamente esses conceitos. Do mesmo modo, se examinarmos a mente e todos os fenômenos de um lado ao outro, não seremos capazes de encontrar algum átomo de existência verdadeira. A mente que efetua a busca não pode ser percebida. Também, vejamos que não há absolutamente nada que possa ser visto (como existindo realmente).

Terceiro, não se desviar desta natureza.

Como uma gralha solta de um barco voa em todas as direções, mas volta ao barco em seguida (quando ela não vê mais a terra), do mesmo modo a mente cheia de desejo perseguirá talvez os pensamentos, mas se estabilizará em seguida sobre a natureza original imutável da mente em si-mesma. Não afetada pelas situações, livre de esperança, destruímos todas as dúvidas ocultas – é a mente vajra.

2. A meditação comporta três aspectos.

Primeiro, a não-meditação do Mahamudra.


A verdadeira natureza da mente que cortou a raiz da ignorância é como o céu. Não há meditação a fazer, então evitem a meditação. Mantendo a mente comum em seu modo original espontâneo, ela não é adulterada por nenhum conceito artificial. Esta mente naturalmente pura não tem necessidade de artifício. Sem segurar firmemente nem deixar ir, repousemos em nossa própria natureza. Se não há nada a realizar, então, o intelecto não tem necessidade de meditar sobre nada. E aquele que realiza está também livre do objeto da meditação como do meditante. Como o céu não é objeto para o céu, a vacuidade não medita sobre a vacuidade. Esta compreensão não-dual é como leite na água, assim toda coisa permanece imutavelmente na satisfação total da integração.

Segundo, a suprema meditação consiste em não separar-se nunca da natureza da não-meditação.

Assim, através dos três tempos, permaneçam no estado original e sem limite livres da meditação. Manter isso é convencionalmente chamado "meditação". Não reprimam os ventos vitais, não entravem a mente. Guardem a presença não artificial como carregaríamos uma criança2.

Quando pensamentos e lembranças surgem, conservem a presença da sua verdadeira natureza – não criem nenhuma diferença entre a água e a onda!

Terceiro, a ilustração, com ajuda de exemplos, da Via do Mahamudra


A verdadeira natureza livre do ‘objetivismo’ da mente comum libera totalmente os três princípios da interação3.

No Mahamudra, a mente não é levada a trabalhar e não há o mínimo de prática da meditação, por isso não há meditação. A meditação suprema nunca esteve separada da natureza da não-meditação – não-dual, espontaneamente co-emergente, é o sabor da satisfação completa.

Quando a água é vertida na água, não há mais que um sabor, e mesmo quando estamos totalmente fundidos no estado natural, a mentalização da espera e da conceitualização é completamente esgotada.

3. O ensinamento sobre a ação comporta três aspectos.

Primeiramente, mostrar que a ação do Mahamudra não é fixado por uma regra.

Maravilhoso! Os yogis que permanecem na natureza imutável da não-dualidade não têm o menor traço de apego e rejeição. Não mantenho nem descarto nenhum fenômeno, também não digo, a meus filhos, fazer o que quer que seja. De mesmo modo que esta jóia, a mente não tem realidade substancial, a ação de um yogui é, também ela, desprovida de realidade substancial.

1. Quer dizer que não é um objeto para a compreensão dualista.

2. Nem muito relaxado nem muito tenso, lhe dando liberdade mas sempre vigilante.

3. Sujeito, objeto e sua conexão.

Falamos de numerosas espécies de construções mentais, mas os yoguis permanecem em uma única percepção. Esta não sendo uma entidade, o yogui esta completamente livre das numerosas possibilidades de manifestação. Também, com esta liberdade louca e ilimitada, mantenham a ação parecida a de uma criança, livre de toda atividade intencional.

Segundo, o ensinamento sobre como evitar ser manchado pela situação objetiva quando nos comportamos desta maneira.

Maravilhoso! A mente é como o lótus que cresce do lodo do samsara, porque pouco importa quantas faltas temos, a mente jamais é tocada por nenhuma delas. Alimentos e bebidas podem trazer prazer, mas podem igualmente atormentar nosso corpo e nossa mente. Pouco importa o que utilizemos, não sejamos afetados, nem ligados nem liberados.

Terceiro, o ensinamento sobre como ser espontaneamente benéfico aos outros por uma compaixão sem desejo.

Quando estamos no estado de realização, cujas modalidades de ação são ilimitadas, vendo os tormentos dos seres extraviados insensatos, lágrimas correm por uma irresistível compaixão. Dando-lhes a nossa felicidade e tomando seus sofrimentos, trabalhamos pelo bem estar de todos. Se examinarmos a realidade, descobriremos que ela é livre dos três conceitos de sujeito, objeto e conexão dos dois. Não é uma coisa verdadeiramente real, porque é como um sonho ou uma ilusão mágica. Estando livres de todos os desejos e de todos os apegos, experimentaremos uma alegria desprovida de tristeza, do mesmo modo ajam como um mestre da ilusão fazendo mágica.

A terceira seção trata da realização total do Mahamudra.

1. Ensinamento sobre a realização incontestável do resultado.


Da natureza primordialmente pura como o céu, não há a menor entidade a obter ou descartar. É o Mahamudra livre da mentalização, igualmente não ansiamos por qualquer resultado! Posto que a mente que sustenta esperança é inata (sem nascimento) desde o início, como poderia haver alguma entidade a obter ou a descartar? Agora, se alguém for capaz de verdadeiramente possuir uma entidade real, o que acontecerá à doutrina dos quatro mudras1?

2. Ensinamento sobre a confusão de querer obter alguma coisa quando não há nada há obter.

Como um cervo da montanha que, quando é obnubilado pela sede, corre rapidamente para a água que vê em uma miragem, as pessoas insensatas perturbadas pelo desejo dão-se conta que, malgrado seu furor, seu objetivo só faz afastar-se.

3. Nada obter completamente, é chamado realizar o estado de Vajradhara.

A natureza completamente pura é inata desde o início, e quando não há o menor traço de discriminação, a consciência que cria a distinção é purificada nos campos da realidade. O único nome que pode ser dado é Vajradhara ("quem não se separa jamais da pura natureza"). Assim como vemos, em uma planície desértica, miragens de água pura que não têm existência, da mesma maneira, a mente que nomeia e discrimina deve ser purificada na pureza original. Não podemos dizer que ela é imutável ou totalmente anulada.

Como a jóia que realiza os desejos e a árvore que concorda com a realização dos desejos, nossas esperanças estarão repletas pelo poder de nossa aspiração (em realizar este ensinamento). E ainda, as noções convencionais desse mundo não pertencem senão a verdade relativa – na realidade, não há a menor coisa que tenha alguma existência individual.

Este ensinamento secreto do Mahamudra chamado "O Tesouro dos Cantos" (Dohakosha) emana da voz do glorioso ermitão Saraha. Foi traduzido pelo erudito indiano Vairocanaraksita.

1. Karmamudra, jnanamudra, mahamudra, samayamudra.

Fonte: http://www.nossacasa.net/SHUNYA/default.asp?menu=1157

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