Monday, April 03, 2006

O Tratamento das Emoções


Kalu Rinpoche

As quatro atenções

Livre do apego e de qualquer preocupação com o corpo, o praticante se retira para um local solitário para entregar-se à meditação. Esta repousa em primeiro lugar sobre as "quatro completas atenções":

* a completa atenção ao corpo;
* a completa atenção às sensações;
* a completa atenção à mente;
* a completa atenção aos fenômenos.

Pela prática dessas quatro atenções, a mente estabiliza-se. Elas são um equivalente do que se chama a "pacificação mental" (sânsc. shamata, tib. shine). A mente é focalizada sobre um único objeto, sem se deixar influenciar por nenhum pensamento, qualquer que seja, é claro, por nenhuma emoção conflituosa.

Dessa forma, ela permanece perfeitamente em repouso. A primeira das quatro atenções completas é aquela voltada para o corpo. Baseia-se na assimilação que fazemos de nossa pessoa ao nosso corpo. Nessa técnica, a mente é fixada sobre esse simples sentimento de ser o corpo, sem acrescentar nenhum julgamento nem nenhuma apreciação do tipo "Este corpo é uma boa coisa ou ele é uma coisa ruim; ele é agradável ou ele é doloroso; ele tem boa saúde ou uma saúde ruim; ele existe ou ele não existe, etc." Está-se somente presente na impressão de se ter um corpo, sem nenhuma distração. Essa abordagem compreende numerosos métodos. Este é apenas um deles.

Através do corpo, sensações variadas são experimentadas: o frio ou o calor, a suavidade ou a aspereza, etc. Quando, qualquer que seja a sensação sentida, ainda sem julgamento, a mente permanece concentrada nela, sem distração, chegamos à segunda completa atenção.

A terceira atenção recai sobre as sensações da mente: a alegria ou o descontentamento, a felicidade ou o sofrimento, não importa qual tipo de movimento mental. Fica-se simplesmente presente a esses movimentos, sem desenvolver os pensamentos ou segui-los. Basta observá-los de maneira neutra.

A atenção aos fenômenos, enfim, é praticada da mesma maneira, aplicando-se tanto às formas, quanto ao sons, aos odores, etc. Quando, por exemplo, uma forma é percebida pelo olhar, não se tenta desviar dela, também não se faz nenhum julgamento, nem nenhum comentário – "Isso é bonito ou não é, eu a aprecio ou eu não a aprecio..." – mas deixa-se a mente colocada sobre o objeto percebido, sem distração, simplesmente presente. O mesmo se faz com um som, um odor ou qualquer objeto dos sentidos.

Nesse tipo de meditação, é preciso compreender que a noção de mente se aplica ao presente: tudo o que já foi produzido na mente não está mais lá; passado e futuro não são reais. A mente no presente não é marcada pelo tempo; ela também não tem nenhuma realidade material, nem cor, nem forma, nem volume, etc. Nesse sentido, ela é a vacuidade na qual tendemos a permanecer plenamente.

As quatro renúncias justas

Depois de ter exercitado nessas quatro completas atenções, o praticante aborda as "quatro renúncias justas", que se situam no plano moral: por um lado, ele toma consciência dos atos negativos que já foram cometidos, rejeitando-os como nocivos, ao mesmo tempo que procura não mais cometê-los no futuro. Além disso, esforça-se para dar mais força às tendências positivas já nascidas nele, assim como conquistar aquelas que ainda não possui.

Tornar-se o fogo

Um outro elemento desta abordagem é constituído pelos "quatro fundamentos dos prodígios". Por isso entende-se ter atingido tais capacidades de concentração que elas resultam na obtenção de poderes extraordinários. Aquele que, com o poder de suas capacidades, medida sobre o elemento fogo, pode fazê-lo com uma tal potência que efetivamente sentirá o corpo como uma chama; se ele medita sobre o elemento água, sentirá seu corpo como uma corrente de água. Ele pode operar os mesmos prodígios concentrando-se sobre o vento ou sobre a terra. É por isso que na história dos arhats e dos buddhas solitários do passado encontra-se um certo número de casos em que, no momento da morte, eles se transformam em uma bola de fogo, em uma massa de água ou ainda em um raio de luz.

Prática das quatro atenções

Para termos uma certa idéia desta abordagem de meditação, o melhor é praticarmos juntos as quatro completas atenções que vimos anteriormente.

Em primeiro lugar, pratiquemos a "atenção ao corpo". Tomamos consciência do pensamento: "Eu sou o corpo", isolando-o de todo contexto de apegos e de desejos que lhe é habituado associado. Permanecemos sem outro pensamento e se ele aparecer, nós o cortamos imediatamente. Mantemos uma presença no corpo ao qual nada acrescentamos, sem distração.

(meditação)

Tomemos, agora, "a atenção às sensações". Pode ser uma sensação de frio ou de calor, uma cãibra, uma dor em uma certa parte do corpo ou um comichão, uma sensação agradável ou desagradável. Qualquer que seja a sensação sentida, a mente fica totalmente fixa nela, sem seguir nenhum outro pensamento. Não se está então obrigado a se limitar a uma sensação: se uma desaparece a outra surge, passamos de uma a outra. Não se procura selecionar uma sensação ou outra, mas concentra-se naquela que é a mais forte: pode-se, por exemplo, sentir particularmente o calor, depois experimentar um comichão. Abandonamos então a primeira pela Segunda.

(meditação)

O terceiro tipo de completa atenção é "a atenção à mente". Não se refere neste caso a um objeto exterior, mas ao que se produz interiormente, a todas as expressões da mente, os pensamentos, as emoções, as lembranças, etc. A meditação consiste simplesmente em estar consciente dessas produções mentais sem entretanto considerar o seu conteúdo. Se a mente permanece em um estado de repouso e paz, fica-se consciente desse estado sem fazer nada de particular. Quando os pensamentos se manifestam, não se os encoraja, particularmente se eles são bons, gerados, por exemplo, pela devoção ou a compaixão, do mesmo modo que não se procura afastá-los se eles são negativos, provocados pela irritação, a cólera, o desejo, etc. Está-se somente consciente do que se passa, seja para manter um pensamento, seja para interrompê-lo.

(meditação)

Enfim, o quarto modo de atenção é dirigido aos fenômenos exteriores, tais como nossos diferentes sentidos os percebem. Na verdade, a totalidade do que permite a manifestação, a saber, a mente que percebe, os órgãos dos sentidos e os objetos exteriores, tudo isso constitui os fenômenos. Nesse tipo de meditação, dirige-se a atenção para os objetos percebidos, sem acrescentar nenhum julgamento. Durante os exercícios de meditação que fazemos agora escutamos, por exemplo, o barulho dos carros que chega da rua. Pode-se tomá-lo como objeto da atenção. Não se pensa que se trata de um barulho agradável ou desagradável, que é inconveniente ou não. Contenta-se em estar presente no barulho.

(meditação)

Vimos agora o conjunto dessas quatro completas atenções: ao corpo, às sensações, à mente, aos fenômenos.

Nesses exercícios, o mais importante é a própria mente. Ainda uma vez, lembremo-nos que não nos referimos aqui a alguma coisa limitada por uma forma, uma cor, um volume ou uma localização; não se pode, por exemplo, dizer: "Minha mente é alta ou baixa"; não são características que lhe podem ser aplicadas. A mente é o que conhece, o que sente, o que produz os pensamentos, as percepções e os sentimentos. Na meditação não nos preocupamos com os pensamentos que já foram produzidos no passado, nem por aqueles que serão produzidos no futuro, mas unicamente pelo presente da mente: esta não tem lados, frente e atrás, não tem limites, cor, etc. Ela é vazia. Não é uma realidade que possa ser definida. Meditemos então, agora, permanecendo simplesmente na mente indefinível.

(meditação)

Essas meditações levam a uma mudança da percepção que temos de nós mesmos: nosso corpo é visto como uma bolha na superfície da água, a palavra parece um eco sem realidade própria, e os pensamentos parecem uma miragem. Quanto ao mundo exterior, aparece para nós como um conjunto de condições nocivas à prática.

Adotar esta visão, meditação e ação é tomar um caminho seguro que leva infalivelmente à liberação. Elas permitem desvencilhar-se do sofrimento desta existência e conduz ao estado de arhat. Seu valor é, portanto, muito grande.

O Mahayana e o tratamento das emoções: a transformação

O Mahayana baseia-se no princípio de que não se deve se preocupar apenas com si mesmo, e sim, considerar o outro como mais importante. Portanto, uma ênfase particular é colocada sobre o amor e sobre a compaixão. Assim, no início de qualquer prática, pensa-se que vai ser realizada com o objetivo de poder liberar todos os seres do sofrimento e de poder levá-los à felicidade definitiva. Do mesmo modo, ao final de uma prática, dedica-se toda força positiva que emana dela para o bem de todos os seres, para que se tornem livres dos sofrimentos, do karma e das emoções conflituosas e para que alcancem finalmente o estado de buddha.

Extensão do Mahayana

O grande veículo divide-se em dois aspectos: o "Mahayana dialético" e o Vajrayana. Desses dois aspectos, o segundo é mais rico em métodos e mais profundo. O Mahayana dialético, ensinado nos sutras, considera a prática como uma causa que leva a um resultado, enquanto que o Vajrayana, vindo dos tantras, considera, ao contrário, o resultado como desde agora presente. Mais freqüentemente, quando se fala do Mahayana, sem outra precisão, refere-se à primeira das duas abordagens e não ao Vajrayana. É também ao Mahayana dialético que o presente ensinamento será dedicado.

A bodhichitta

Encontramos o fundamento do Mahayana na dupla noção de bodhichitta :

* a bodhichitta relativa
* a bodhichitta absoluta

A bodhichitta relativa consiste no reconhecimento de que todos os seres foram nosso pai ou nossa mãe no passado, e a seguir na observação de nossa própria situação para compreender que ela é comum a todos; ficamos felizes por causa dos acontecimentos agradáveis que nos acontecem, infelizes se encontramos o sofrimento. Compreendendo que todos os seres funcionam desse modo, desenvolvemos o amor e a compaixão.

A bodhichitta absoluta é o desenvolvimento, por meio do conhecimento justo, da compreensão da natureza finalmente vazia de qualquer fenômeno. Pode-se, sem se limitar a uma adesão intelectual, abordar a noção geral de vacuidade por uma meditação discursiva baseada no raciocínio, mas essa abordagem corre o risco de permanecer na superfície das coisas. É preferível começar por compreender a natureza de nossa própria mente: ela existe desde sempre, primordialmente; não tem existência material: não tem forma, cor, volume etc.; não podendo ser percebida como uma coisa, é, assim, vazia. Em seguida, com base nessa compreensão, chega-se a uma certeza que apenas a experiência da meditação pode proporcionar, além de todos os conceitos. Quando se chega à certeza da vacuidade da mente, desenvolve-se, então, a percepção de que todos os fenômenos – nosso corpo e o mundo exterior – procedem de fato da mente. Sendo a própria mente vazia por natureza, todas as suas produções também o são. Chega-se, assim, à conclusão de que todas as coisas são vazias por natureza.

Os três corpos do samsara

Ainda que essa asserção da vacuidade de todas as coisas possa nos parecer desconcertante, o exemplo do sonho poderá nos torná-la mais compreensível. Quando sonhamos, percebemos todo um mundo constituído de formas visíveis, sons, objetos tangíveis que nos parecem reais. Entretanto, eles não existem em parte alguma; eles são unicamente uma produção da mente. Durante o sonho, eles parecem possuir a mesma realidade do mundo que percebemos agora e é por isso que podem provocar a dor ou o prazer. Mas quando estamos acordados, tudo o que parecia existir durante o sonho – nosso corpo, o meio, as casas, etc. – tudo isso desaparece. É apenas a mente, manifestando-se por meio de um corpo onírico chamado o "corpo dos condicionamentos latentes". O que é verdadeiro para o sonho, também o é para nossa experiência presente, por meio do que se chama o "corpo de maturidade cármica".

Quando abandonamos este mundo, no momento da morte, os sentidos deixam de funcionar de modo que o corpo e o mundo exterior não são mais percebidos. A mente fica só. Ainda que ela seja vazia, produz de novo aparências ilusórias, incluindo a visão, a audição, o tato, etc., tudo como agora. A alegria, a dor, o medo, portanto, são também experimentados, por meio de um "corpo mental", como se todo o meio parecesse real.

A mente permanece assim um certo tempo no bardo; depois, sob a força do karma, ela é levada a renascer sob uma forma ou outra. Quando isso se produz, todos os fenômenos que se manifestaram durante o bardo desaparecem. Eles não existem mais em nenhuma parte. Então, é de novo o "corpo de maturidade cármica" que dá continuidade, como suporte de existência, em uma das seis classes de seres.

A totalidade de nossa experiência no samsara desenvolve-se, então, por intermédio desses três corpos: corpo de maturidade cármica, no estado de vigília, corpo dos condicionamentos latentes, no sonho, corpo mental, no bardo.

Vacuidade e compaixão

Saber que todos são na realidade uma manifestação da mente, que ela mesma é vazia, desprovida de qualquer característica material, e, sobre esse fundamento, tomar o caminho das diferentes etapas da meditação – a pacificação mental e a visão superior – caminho que leva à realização desta vacuidade, é o que se chama a bodhichitta absoluta.

Tendo como referência essa vacuidade de todas as coisas, tomamos consciência que os seres, pelo fato deles não a realizarem, mas tomarem o mundo como real, são prisioneiros da engrenagem do desejo, da aversão e da cegueira. Por esse fato, são sacudidos pelas incessantes ondas do ciclo dos renascimentos, indo de sofrimento em sofrimento. Essa visão da condição dolorosa dos seres, derivada da ignorância da vacuidade, produz um ímpeto de amor e de compaixão: é a bodhichitta relativa.

Essa bodhichitta relativa é extremamente poderosa: ela nos permite purificar-se de condicionamentos latentes e de muito karma negativo, assim como acumular muito mérito e sabedoria. Essa purificação e essa acumulação proporcionam, por sua vez, uma grande abertura para o aprofundamento da experiência da vacuidade. Diz-se que permitem que todas as qualidades cresçam da mesma maneira que as chuvas da monção enchem os rios.

Guiados pela vacuidade e pela compaixão, praticando as seis paramitas – o dom, a ética, a paciência, a diligência, a concentração e o conhecimento – percorre-se o caminho do Mahayana que, da primeira à décima terra de bodhisattva, conduz ao estado de buddha.

A transformação das emoções

Geralmente, contam-se seis emoções principais, repartidas em dois grupos de três. O desejo-apego, o ódio-aversão e a cegueira constituem a base sobre a qual se implantam as outras três: do desejo-apego nasce a possessividade, do ódio-aversão, o ciúme, da cegueira, o orgulho.

Essas seis emoções conflituosas estão relacionadas com os renascimentos nos diferentes mundos, segundo sua predominância:

* ódio-aversão conduz ao renascimento nos infernos;
* a possessividade, no mundo dos espíritos ávidos;
* a cegueira, no mundo animal;
* desejo-apego, no mundo humano;
* ciúme, no mundo dos semideuses.
* orgulho, no mundo dos deuses.

Razão do renascimento em uma outra condição de existência, as emoções conflituosas são modificadas pelos atos positivos e negativos: os primeiros produzem as alegrias e as felicidades dos três mundos superiores (humanos, semideuses e deuses), os segundos provocam os sofrimentos dos três mundos inferiores (animais, espíritos ávidos e infernos).

Gradação das emoções

Podemos classificar as emoções conflituosas segundo a quantidade de sofrimento que provocam. Desse ponto de vista, o ódio-aversão aparece como o de conseqüências mais pesadas, já que causa as dores extremas dos infernos. Em segundo, vem a possessividade que provoca o renascimento no mundo dos espíritos ávidos, já que a cegueira – a estupidez, o ciúme, causa do renascimento entre os semideuses, envolvidos em querelas e conflitos contínuos, sofrendo de uma insegurança permanente, resultado de seu desejo de ter o que os outros possuem, em particular os deuses.

O desejo-apego e o orgulho são as duas emoções conflituosas cujo predomínio conduz ao renascimento em mundos relativamente felizes, aqueles dos homens ou dos deuses. Para que produzam esse resultado, é preciso, entretanto, que intervenham outros fatores.

Tomemos o exemplo dos deuses. Seu orgulho, isolado de qualquer contexto, leva-os a pensar: "Eu sou forte, inteligente, alguém importante". Foi preciso este orgulho, fortemente dominante com relação ao desejo, à cólera, ao ciúme, etc. , para renascer nesse mundo. Se, entretanto, os deuses gozam ali de todos os prazeres dos sentidos e de uma longa vida, é porque a esse orgulho foi acrescentado um forte potencial de karma positivo. À vida de um deus vai ser, portanto, essa mistura de orgulho e de prazer dos sentidos no qual as outras emoções só intervêm muito pouco.

Da mesma maneira, uma predominância do desejo-apego origina a vida humana. Entretanto, ela será nuançada por outros fatores: um karma positivo anterior permitirá que seja feliz e longa, enquanto que um karma negativo anterior produzirá doenças, pobreza e numerosas dificuldades.

O desejo-apego não é em si mesmo um defeito, como também não é a causa direta de muitos atos negativos. Seu inconveniente é ser seguido de cólera, ciúme, etc., que são muito nefastos.

Temos, então, seis emoções conflituosas fundamentais; mas elas não poderiam descrever toda a complexidade da situação. É por isso que consideramos numerosas ramificações que levam a um número total de 84 mil emoções conflituosas. Sua intervenção leva-nos a errar continuamente no samsara.

As técnicas de transformação das emoções são diferentes sob o Mahayana dialético ou o Vajrayana. Iremos tratar aqui do primeiro, unindo a teoria à meditação.

Refúgio e bodhichitta

Considerando-se que nos situamos no contexto do Mahayana, primeiramente devemos lembrar que não somente nós mesmos, mas todos os seres, são prisioneiros do samsara. Desejamos, portanto, obter para nós mesmos a libertação e a felicidade que resultam do Mahayana, assim como a capacidade de ajudar os outros e conduzi-los a essa mesmas felicidade. Dado que apenas as Três Jóias podem nos guiar nesse caminho, tomamos refúgio nelas do fundo do coração. Depois, geramos a mente do Despertar, a bodhichitta, pensando: "Para o bem de todos os seres, eu me exercitarei na transformação das emoções segundo o ensinamento do Mahayana".

No momento em que nós recitamos a fórmula de tomada de refúgio, pensamos que, no céu a nossa frente, estão os buddhas, os bodhisattvas e os textos representando o ensinamento. Em sua presença, pensamos que nós mesmos e todos os seres, com confiança e respeito, prosternamo-nos e pedimo-lhes para nos proteger dos sofrimentos do samsara.

(meditação)

Ao final da recitação da tomada de refúgio, pensamos que os buddhas e bodhisattvas emitem uma imensa luz que toca todos os seres e os purifica de seus erros e de seus véus. Depois, sentimos plenamente a graça recebida das Três Jóias e guardamos por um momento a mente em repouso

(meditação)

Agora, lembramo-nos que todos os seres das três esferas e dos seis mundos foram nosso pai e nossa mãe em nossas vidas passadas. Todos cometem muitos atos negativos, causa dos sofrimentos, e experimentam o resultado disso. Pensamos que é preciso retirá-los do oceano de sofrimentos do samsara e trazê-los ao estado de buddha e que, para fazer isso, iremos praticar a meditação do Mahayana. Com esse pensamento recitamos a fórmula do desenvolvimento da mente do Despertar.

Transformação da cegueira

Tomemos agora a postura de meditação, as costas bem retas, e deixemos nossa mente em repouso. Nessa mente em repouso, o desejo-apego, o ódio-aversão, a possessividade, o ciúme e o orgulho estão inativos. Constata-se, entretanto, a presença da cegueira que é a base das outras emoções. Esta cegueira significa que não compreendemos as implicações de nossos atos e de nossa situação; significa também que, quando um pensamento ou uma emoção se produzem, nós não vemos, fora do simples sentir do pensamento ou da emoção, qual é a sua natureza e origem. Primeiramente, iremos meditar tomando por base essa cegueira.

A cegueira vem da ignorância (sct. avidya) fundamental. Ainda que sejam muito semelhantes pode-se dizer que a ignorância é o fato de a mente nada perceber, e a cegueira, o fato de nada compreender. Podemos comparar essas duas noções à obscuridade, uma obscuridade sem lua, sem estrelas, sem vela, sem eletricidade.

Precisamos transformar essa cegueira e essa ignorância, essa "in-consciência", em consciência. Para fazer isso, permanecemos simplesmente na vacuidade da mente, que possui de maneira inerente a capacidade de consciência. Quando um pensamento ou uma emoção se elevam, continuamos preservando nossa capacidade de percebê-los, de termos consciência deles. Permanecemos na consciência de nosso estado interior.

Essa meditação é muito fácil. Se a mente permanece na vacuidade, ficamos simplesmente conscientes dessa vacuidade. Quando um pensamento se produz, só temos que reconhecê-lo, sem querer interrompê-lo, mas também sem segui-lo. Depois, quando um outro pensamento se apresenta, de novo apenas reconhecemos sua presença. É extremamente simples.

(meditação)

A cegueira é não-conhecimento. Por esse processo nós a transformamos em conhecimento, em consciência do que se passa. É muito fácil: a mente permanece simplesmente lúcida, consciente, seja da ausência de pensamentos, seja dos pensamentos que se produzem. Não há nada a rejeitar ou nada a produzir. A própria não-consciência se transforma em consciência.

(meditação)

Esta meditação, que pode ser feita regularmente, é semelhante à luz que afasta a obscuridade da qual falamos há pouco. Ela é um meio de desenvolver a paramita do conhecimento.

Transformação do desejo

Em segundo lugar, tomemos o desejo. Como podemos transformá-lo em experiência de felicidade? Tomemos o desejo sexual: ele ocorre ao vermos uma bela mulher ou um belo homem e provoca uma sensação agradável, ao mesmo tempo física e mental. A esta sensação vai se acrescentar um elemento complicador: a sede de possuir o objeto do desejo. Esta sede é um produto da cegueira que não vê que a primeira sensação agradável é suficiente. Faz acreditar que a posse também é necessária.

Supondo que um homem veja uma mulher bonita, o desejo faz com que ele experimente logo uma sensação física e mental agradável. Ao mesmo tempo, a cegueira provoca uma vontade de posse, da qual se espera que consolide a experiência de felicidade. No contexto da meditação que visa transformar as emoções, detém-se na sensação de felicidade produzida pelo desejo, sem considerá-la como uma coisa ruim, sem querer rejeitá-la. Fica-se consciente dessa felicidade, lucidamente, e ele é experimentada sem que se deixe levar pela sede que queria possuir o objeto.

Assim, a alegria proveniente do desejo não causa nenhum problema. Quando pensamos em alguém que amamos, eleva-se espontaneamente uma alegria interior e um bem-estar físico. Permanecemos simplesmente não-distraídos nessa sensação de alegria, sem sermos tomados pelas complicações devidas à sede de posse. O fato de permanecermos nessa sensação, faz com que ela cresça e leva-nos a um estado de felicidade natural. Meditar assim é extremamente benéfico.

Meditemos, então, agora, pensando em alguém ou em um objeto que nos atraia particularmente, depois, permanecemos na sensação agradável provocada por esse pensamento.

(meditação)

O mercador e a cortesã

Um sutra relata uma história que ilustra esta maneira de abordar o desejo.

Em um certo país, um homem, rico e prudente, dirigia um comércio importante, por conta do qual trabalhavam numerosos negociantes. Um dia ele organizou uma caravana para ir negociar em um país longínquo, conhecido por seus recursos abundantes, reputado por ser governado por um monarca justo e sábio e, mais ainda, por ser a moradia de uma cortesã de incomparável beleza, que fazia fortuna vendendo seus charmes aos mercadores de passagem.

Quando os mercadores chegaram à cidade onde ela trabalhava, só falavam de seu charme, de seus atrativos, de sua reputação. Só pensavam em pagar sua parte para não perder uma tão boa oportunidade. Todos, exceto um, o chefe deles, que tentava fazê-los raciocinar:

— Nós fizemos uma longa viagem com um objetivo bem preciso: comerciar para ganhar dinheiro. Ora, ao contrário, tenho a impressão que vocês se apressam em gastá-lo. Vocês desejam possuir essa cortesã: o que ganharão com isso? Vão perder seu dinheiro e arriscar a saúde. Com certeza terão um momento de prazer físico, mas ele será breve e não vale o que vocês estão prestes a pagar. Não nego que esta mulher seja atraente e admito que eu mesmo sinto desejo por ela. Esse desejo me dá alegria: guardo esta alegria sem perder meu dinheiro, nem minha saúde. Por que vocês não fazem como eu?

Os mercadores não ficaram muito convencidos com esse discurso. Eles desejavam a cortesã. Tiveram-na e dilapidaram todos os seus bens.

A cortesã ficou, por sua vez, bastante contrariada com a atitude do chefe deles. Estava ofendida por ter sido desdenhada, ainda mais por saber que ele era muito rico. Perguntou aos companheiros dele o que o levava a rejeitar seus serviços.

— Não é que ele a ignore – responderam. Ele até sabe que você é muito bonita e muito desejável. Mas ele diz que a alegria que nasce na mente dele ao pensar em você é suficiente. Ele não sente necessidade de ir além.

Essas explicações contrariaram ainda mais a cortesã. De uma certa maneira, o chefe dos mercadores a queria! Ele se aproveitava de sua pessoa, já que experimentava a alegria de pensar nela, mas não queria fazer nenhum pagamento. Para ser recompensada e para se vingar do desprezo do mercador, pensou em uma estratégia. Dirigiu-se ao rei para se queixar. Todavia, não podendo acusar um homem simplesmente por pensar nela, declarou que um certo chefe dos mercadores tinha vindo várias vezes em sua casa mas se recusava a pagá-la. O rei devia fazer-lhe justiça.

O rei convocou o acusado para ouvir sua defesa. Este, desmentiu as acusações da cortesã. Sim, é verdade, era sensível como todo mundo aos charmes da cortesã, mas ele se contentava com a alegria que sentia ao pensar nela. O rei, logo convencido de que se tratava de um homem direito e honesto, aceitou sem hesitação sua versão dos fatos. Quanto à reparação que a cortesã pedia, ela lhe seria concedida.

Comunicou à cortesã que na manhã seguinte o mercador pagaria tudo o que lhe devia e que para receber ela deveria ir até a margem de um pequeno lago próximo à cidade.

Qual não foi a alegria da cortesã quando, de manhã, ela viu toda a caravana do mercador alinhada sobre a margem do lago! Ela ficaria rica e seria vingada! Sua alegria durou pouco. O rei, aproximando-se dela, disse:

— Este mercador não foi em sua casa para usufruir de seus charmes, mas é verdade que ele tira, em pensamento, um certo proveito deles. Portanto, é justo que você seja paga por isso. Já que o mercador está feliz com o reflexo de sua beleza em sua mente, é natural que você seja paga com o reflexo de sua beleza; ela está aí: sobre o lago.

Neste método, não se trata de abandonar completamente a vida mundana e rejeitar o contato com as mulheres ou com os homens. Do desejo, guarda-se apenas a alegria, a sensação de felicidade; não entrando em complicações ulteriores e não cometendo atos negativos, aproxima-se do estado de buddha. Nas seis paramitas, este tratamento do desejo inscreve-se no da ética.

Transformação da aversão

No Mahayana, os meios de tratar o ódio-aversão são tão numerosos, quanto é forte a insistência sobre o amor e a compaixão. Vejamos, simplesmente aqui como abordar o ódio-aversão do ponto de vista da meditação.

Quando um forte acesso de cólera se manifesta, produz-se ao mesmo tempo na mente uma grande vivacidade, um grande vigor, como um raio que proporciona um possante dinamismo. Entretanto, mais uma vez, por causa da cegueira, esse vigor não é reconhecido; deixamo-nos levar pelas complicações que o acompanham, dirigidas ao objeto que suscitou nossa cólera: pensamos em prejudicar, bater ou matar. Contudo, a essência dessa cólera, longe de se situar na obscuridade,é uma grande claridade. É preciso, portanto, que olhemos essa essência, permanecendo sem distração nessa claridade. Assim operamos a transformação da emoção: a cólera é transformada em claridade.

Para realizar nosso exercício de meditação, pensemos agora em uma pessoa ou uma situação que provoque nossa cólera. Sem seguir o movimento dessa cólera, permanecemos sem distração na claridade que a acompanha.

(meditação)

Assim, cada vez que se produzir em vocês um movimento de cólera ou de aversão, vocês podem permanecer na essência clara que a subentende, sem procurar rejeitar ou seguir a cólera, mas fixando-se em sua vivacidade. Desse modo a cólera se transformará em claridade.

Transformação do orgulho

“Sou melhor que os outros; sou muito inteligente; sou importante”: esses pensamentos característicos de um forte apego ao “eu” constituem o orgulho. Quando o orgulho se produz, permanece-se neutro diante dele, sem rejeita-lo ou segui-lo, conservando simplesmente a mente nesse sentimento, sem distração; a partir de então esse orgulho, comparável a uma montanha, encontra-se naturalmente aplainado. O “eu” perde sua supervalorização.

(meditação)

Na medida em que aprendemos a meditar dessa maneira, as numerosas ocasiões em que o orgulho se eleva em nossa mente acabam sendo muito proveitosas, pois transformam no suporte para o desenvolvimento da quinta paramita, a da concentração. Ao mesmo tempo, o orgulho, nascido da assimilação de um “eu”, quando se apaga pelo fato de olharmos sua essência, dá lugar à percepção da ausência do eu.

Transformação da possessividade

Todos nós somos marcados pelo conjunto das emoções conflituosas. Dentre elas, a possessividade, que se aplica ao nosso corpo, a nossa casa, a qualquer de nossos bens, está sempre muito presente e é muito forte. Qualquer que seja a forma que ela se apresente, podemos neutraliza-la pelo dom praticado em diferentes graus: o dom dos bens materiais é o primeiro grau, o dom de sua família é o segundo, o dom de seu sangue e de sua carne constitui a forma mais elevada. O Mahayana oferece assim uma grande variedade de meios, colocando em prática a generosidade para suplantar a possessividade.

Do ponto de vista da meditação, onde nos situamos agora, quando a possessividade se produz, nós a tratamos do mesmo modo que as emoções precedentes: sem segui-las ou rejeita-la, permanecemos simplesmente no sentimento que é a sua base. Assim, a possessividade ordinária se tornará um sentimento de contentamento, neutro, do qual se apagará espontaneamente o caráter nocivo. Quando a possessividade desaparece, ela é automaticamente transformada em seu oposto: uma generosidade fundamental.

Transformação do ciúme

O ciúme é comparável a um espinho: espeta não somente os outros, mas volta-se também contra aquele que o concebe, deixando-o muito incomodado e tornando-o infeliz. Cada vez que o ciúme se elevar, permaneçamos simplesmente fixados nele, sem segui-lo ou rejeita-lo: ele se apaziguará automaticamente e não poderá “espetar”. Encontrará espontaneamente sua essência que é a paz interior. Assim, o ciúme é transformado em paz, ao mesmo tempo que, do ponto de vista das seis paramitas, ele se encontra associado à quarta, a diligencia.

Dessa forma, vimos brevemente como abordar as seis principais emoções conflituosas por meio da meditação. Entretanto, é à transformação das três primeiras – desejo-apego, ódio-aversão e cegueira – que é necessário se dedicar primeiramente. Assim, o desejo – apego será transformado em felicidade vazia, o ódio-aversão em claridade vazia e a cegueira em conhecimento. Isto mostra como esse tipo de meditação sobre as emoções é benéfico. As três emoções de base são para nós a fonte mais abundante de atos negativos, de problemas e de sofrimentos; por isso, é necessário aborda-los em primeiro lugar. As outras três – possessividade, orgulho e ciúme – são apenas corolários.

Todas as emoções conflituosas vêm da mente. Para concluir, permanecemos um momento na vacuidade da mente, depois dedicaremos o mérito deste ensinamento e dessa prática ao bem-estar de todos os seres.

(meditação)

O Vajrayana e o tratamento das emoções: o simples reconhecimento

Ao longo deste ensinamento, iremos considerar, na perspectiva do Vajrayana, como se opera, pela meditação, a liberação das emoções conflituosas em seu simples reconhecimento.

O Vajrayana, de um modo geral, oferece instruções que tratam de maneira específica os pensamentos e as emoções, de modo a permitir um progresso muito rápido no caminho do Despertar. Considerando-se que os humanos pertencem a um domínio de manifestação chamado a “esfera do desejo”, uma atenção especial é dada ao desejo-apego. Estabelece-se particularmente uma correspondência entre as quatro classes de tantras e os quatro graus de complexidade crescente de satisfação do desejo sexual que eles permitem tratar.

Tantras e o desejo sexual

Considera-se que nos primórdios deste mundo, o desejo que surgia entre os homens e as mulheres era saciado com uma simples troca de olhares. A esse grau corresponde o Kriya tantra.

Em segundo lugar, os homens e as mulheres sentiram necessidade de sorrir para exprimir e satisfazer seus sentimentos de atração recíproca. O Charya tantra se aplica a este nível.

Em terceiro lugar, surgiu o desejo de um certo contato físico, especialmente o desejo de tocar as mãos, ao que corresponde o Yoga tantra.

Enfim, o desejo sexual só pôde ser preenchido pela união física e é neste estado que entra em jogo o Anuttara yoga tantra..

Sinais de sucesso

Todos esses métodos buscam uma certa eficácia. Os homens, por exemplo, cultivam os campos; ficam exaustos de trabalhar, plantar, tratar as terras. Isto só tem sentido tendo em vista uma boa colheita, lucrativa para aqueles que trabalharam. Nesse caso, pode-se dizer que o cultivo foi um sucesso. Se, ao contrário, apesar do trabalho despendido, não se obtém uma colheita, simplesmente perdeu-se tempo e energia. Do mesmo modo, em numerosas tradições espirituais mestres variados dão instruções variadas. Essas instruções têm por função ser benéficas para a mente, em particular servir como remédio às emoções conflituosas. Se, pela prática e meditação que procedem dos ensinamentos, as emoções diminuem, isto significa que a meditação é fecunda. Quando, ao contrário, as emoções permanecem estáveis ou até aumentam, é sinal de que a meditação é estéril. Ela não alcançou seu objetivo.

O buddha distinguiu os resultados que decorrem do estudo e aqueles que decorrem da meditação. Dizia que um bom erudito poderia ser reconhecido pelo fato de ter uma grande fé nos mestres e nas Três Jóias, pela compaixão pelos seres, por uma certa imparcialidade na abordagem das posições filosóficas das diferentes escolas. O comportamento do bom erudito é comparado a uma pequena bola de lã que cai na água. A lã não faz barulho, nem redemoinho; do mesmo modo, o bom erudito é uma pessoa discreta e doce, que não apresenta em seu caráter nem rudeza, nem tendência à agitação. De um outro lado, a meditação conduz à ausência de emoções conflituosas. Se a meditação permite-nos rejeitar as emoções, transforma-las ou libera-las na mente, em todos os casos reconhecem-se seus frutos pela diminuição das emoções.

Felicidade e infelicidade do ocidente

Os americanos e os canadenses são certamente pessoas que possuem um grande mérito proveniente de suas vidas passadas. Deduzimos isso pelo fato de, por um lado, suas condições de vida exteriores serem extraordinárias e, por outro lado, por terem podido receber ensinamentos, iniciações e instruções da prática de personalidades eminentes como o Dalai-Lama, o Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpoche, Situ Rinpoche, Shamar Rinpoche, ou Jamgön Kongtrul Rinpoche. Têm também a sorte de terem se estabelecido em seu território lamas tão notáveis como Trungpa Rinpoche e outros. A América do Norte dispõe, então, de um grande potencial positivo.

O país é belo, as casas muito confortáveis, a prosperidade evidente em todos os setores, a começar pela alimentação e roupas. A abundância e a qualidade dos bens materiais são tais, que acreditamos estar no mundo dos deuses. Primeiramente, somos levados a pensar que as pessoas que vivem num tal contexto só podem ser felizes.Entretanto, a mente dos norte-americanos não parece sempre de acordo com seu ambiente: ao invés de encontrar ali felicidade, percebem-se muitas dificuldades, insatisfações e sofrimentos. De onde vêm esses problemas? Das emoções conflituosas, mais particularmente do desejo-apego, que os ocidentais não sabem transformar nem afastar. Parece-me que se as emoções perdessem seu poder, o país se tornaria um lugar extraordinário, onde a alegria e a paz se casariam com a prosperidade.

Um provérbio tibetano diz:

Barriga vazia só pensa no roubo,
Barriga cheia só pensa no desejo.

Isto significa que quem não tem nada para comer é atormentado pela maneira mais imediata de conseguir alimento; quanto àquele que está saciado, sua mente é atormentada pelos prazeres dos sentidos. Parece-me que os ocidentais, mais freqüentemente, têm a barriga cheia...

É por isso que a utilização de meios que permitem dissipar as emoções conflituosas e particularmente o desejo, parece-me indicada para conduzir a uma verdadeira paz e a uma verdadeira felicidade.

Origem das emoções

Vimos, com relação ao Mahayana, métodos que permitem transformar as emoções. Há no Vajrayana métodos que visam purificar as emoções para que elas se tornem as cinco sabedorias ou os cinco buddhas Patriarcas. Esses métodos implicam visualizações complexas que não podem ser ensinadas em público e não podemos, portanto, aborda-las aqui. Entretanto, existe no Vajrayana uma outra abordagem das emoções, fácil de expor e de praticar, muito benéfica, que consiste no “simples reconhecimento”.

Para abordar este método, é preciso, inicialmente, compreender de onde vêm as emoções. É evidente, em primeiro lugar, que as emoções não são produzidas nem pelo corpo, nem pela palavra. Tomemos um cadáver: ele permanece um envelope físico, mas desprovido de mente. Ninguém nunca ouviu falar de um cadáver experimentando o desejo, a cólera, o ciúme ou o orgulho. Portanto, não podemos atribuir de modo algum as emoções ao corpo. Ele não possui nenhuma faculdade para experimenta-las. A palavra também não possui essa faculdade: é apenas um acúmulo de sons, comparável a um eco, logo, desprovida ela própria da capacidade de experimentar o que quer que seja.

As emoções só podem vir da própria mente. Isto não significa que o corpo e a palavra não estejam implicados no processo emocional; mas eles o estão a título de executantes ou de servidores. Eles não são os mestres da situação. Se a mente, por exemplo, pensa que é preciso abrir a janela, é o corpo que vai abri-la; se a mente pensa que é preciso acender a luz ou ir embora, é o corpo que vai acionar o interruptor ou se deslocar. O corpo só pode intervir a serviço da mente, mas ele mesmo não toma nenhuma iniciativa. Do mesmo modo, o corpo não dirige as emoções conflituosas, mas se coloca a serviço da mente que as produz.

A mente é quadrada?

As emoções conflituosas vêm, portanto, da mente. O que é essa mente que as gera? O buddha descreveu a mente como desprovida de cor, de forma, de volume, de tamanho, de toda determinação de ordem material. Sem dúvida, podemos admitir que ela é assim, mas teremos uma convicção mais forte se procedermos pessoalmente a um exame de nossa própria mente: Qual é sua cor? É quadrada, redonda ou triangular? Mede dois ou três quilômetros? Ocupa uma grande ou uma pequena superfície? É preciso que examinemos esses diferentes pontos, diretamente, tomando nossa própria mente como referência. Assim, devemos meditar, primeiramente, olhando nossa mente, depois olhando as emoções conflituosas.

Benefício do refúgio

(recitação)

Ao final da recitação pensamos que os buddhas e todos os aspectos do refúgio emitem raios de luz semelhantes aos do sol; eles tocam todos os seres, liberando-os de todos sofrimentos e de todas as impurezas, e depois conferem-lhes a bênção do corpo, da palavra e da mente Despertos. Com esse pensamento, conservamos a mente alguns momentos em repouso.

Se pudermos recitar nem que por apenas sete vezes por dia esta tomada de refúgio, retiraremos um grande benefício disso. Nesta vida, estaremos protegidos do sofrimento, nossa mente se voltará para o dharma e poderemos avançar por um caminho sem obstáculos.Não somente isso, mas em todas as nossas vidas futuras, nos encontraremos na esfera das Três Jóias e das Três Raízes, até que obtenhamos o Despertar. Não pensem que esta recitação cotidiana da tomada de refúgio seja algo de insignificante; seu alcance é muito grande. O buddha disse muito claramente que aquele que o fizesse, quaisquer que sejam os atos negativos que pudesse cometer, não poderia, depois desta vida, renascer nos mundos inferiores. Não se deve ter dúvidas sobre isso.

Após a tomada de refúgio, recitamos a geração da mente do Despertar. Todos os seres das três esferas e dos seis mundos vivem no sofrimento. Pensamos que é preciso a todos liberar e conduzi-los à felicidade definitiva do estado de buddha e que, por essa razão, iremos meditar.

(recitação)

Em seguida, pensamos que os buddhas e os diferentes aspectos do refúgio, felizes com nossa motivação, reabsorvem-se em uma luz que se funde em nós. Imaginamos, assim, que o corpo, a palavra e a mente dos buddhas tornaram-se um com o nosso corpo, nossa palavra e nossa mente e mantemos a mente um momento em repouso.

(meditação)

Procurando a mente como um alfinete

Iremos agora meditar no estado de vacuidade da mente. Pensamos normalmente: “Tenho uma mente” e tendemos a localiza-la no corpo. Alguns pensam que ela se encontra na cabeça, outros no coração; são apenas opiniões que não correspondem a um exame direto. De fato, não sabemos verdadeiramente o que é a mente.

Sob o poder de uma ignorância fundamental, a mente é assimilada a um “eu” e pensa “eu, eu existo, eu sou este corpo”. Esta identificação ao corpo recobre a totalidade de nosso organismo físico; não poderíamos limita-la à cabeça ou ao coração. Podemos verificar isso de modo simples com um alfinete: se espetarmos a mão, será a mente que sentirá a dor; se espetarmos o pé será a mente que sentirá a dor. Qualquer que seja a parte do corpo que espetarmos, sempre será a mente que sentirá a dor. Isso prova que a mente está presente em todo nosso corpo e não somente em uma parte.

A participação da mente não se limita ao corpo, mas se estende, por intermédio dos órgãos dos sentidos, ao mundo exterior. A própria mente é um “potencial de consciência” que se diversifica nas seis consciências sensoriais: consciências visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental. Ligadas aos órgãos dos sentidos, elas percebem os objetos exteriores correspondentes: formas, sons, odores, etc. Portanto, a mente é parte integrante da percepção do mundo.

De uma certa maneira, a mente nem mesmo é limitada pelas distâncias físicas. Se pensarmos na China ou na Índia, esses países aparecem em nossa imaginação. Isso não quer dizer, é claro, que nos deslocaremos rapidamente para um ou outro desses países longínquos; basta, com efeito, que uma pessoa ao nosso lado diga alguma coisa que atraia nossa atenção para que nossa consciência auditiva nos recoloque no contexto presente. Mas esta faculdade que tem nossa mente de passear em imaginação, sem limitações, é um índice de sua onipresença.

A mente é fundamentalmente a mesma para todos os seres. Se tomarmos um pequeno inseto, do tamanho da ponta de uma agulha, ele é dotado, como nós, da faculdade de sentir: experimenta o medo, a fome, a sede, todos os tipos de sensações. Um elefante possui, ele também, as mesmas capacidades. Os condicionamentos cármicos impõem diferenças na intensidade e nas modalidades do que é percebido, mas encontramos uma mesma mente como fundamento do sentir.

Meditação sobre a mente

Essa mente que penetra todas as coisas, essa mente comum a todos, precisamos compreender o que ela é.

A mente, em primeiro lugar, é vazia, no sentido de que não existe enquanto objeto: não tem cor, nem forma, nem peso, etc. Também não tem lado, nem fronteira, nem centro, nem circunferência. Nada sendo materialmente, é semelhante ao espaço. É necessário saber isto, pois a vacuidade é muito diferente da experiência que temos agora de nossa mente: algo de muito pequeno, que chamamos “eu” , algo limitado ao nosso corpo, algo estreito e conseqüentemente fonte de numerosos problemas.

Deixando nossas costas bem retas, meditamos nessa vacuidade vasta como o espaço, a mente aberta.

(meditação)

“Tenho uma mente; ela se encontra em meu corpo; quero ter as coisas que me agradam, evitar o que me desagrada”: este modo de funcionamento constitui um fardo pesado que nos causa muitos aborrecimentos. Se, ao contrário, colocarmo-nos em um estado de abertura e de tranqüilidade onde reconhecemos a mente tal como ela é verdadeiramente, penetrando todas as coisas, desprovida de qualquer limitação material, experimentamos, então, naturalmente, uma sensação de calma e leveza, sem nenhuma complexidade.

(meditação)

A vacuidade da mente na qual nos colocamos é semelhante ao espaço, não um espaço obscuro onde não brilham nem o sol, nem a lua, nem mesmo as estrelas, mas um espaço iluminado pelo sol, límpido e vasto. Quando nos colocamos na natureza da mente, em sua vacuidade, devemos fazê-lo com essa qualidade de abertura e limpidez. Em segundo lugar, meditamos, então, sobre a “claridade” da mente. Vacuidade e claridade não são dois aspectos que poderiam ser isolados, ficando cada qual de um lado diferente. Da mesma maneira que num dia ensolarado o céu e a luz são apenas um, a claridade e a vacuidade da mente estão indissoluvelmente misturadas.

(meditação)

Vacuidade e claridade são, em si mesmas, inertes: elas não podem gerar nenhum ato benéfico ou negativo, não podem engendrar nem pensamentos nem emoções conflituosas. Quando permanecemos no estado de claridade-vacuidade, semelhante ao espaço vazio, há ao mesmo tempo uma qualidade conhecedora, uma inteligência (sct. vidya, tib. Rikpa) que está consciente da claridade e da vacuidade. A vacuidade-claridade é como a palma da mão e nessa inteligência, como a percepção evidente que temos dela. Todavia, na natureza da mente nada divide esses três aspectos. Meditemos, agora, tomando particularmente consciência dessa inteligência.

(meditação)

A mente espaçosa

Assim, a mente é descrita sob esses três aspectos: vacuidade, claridade, inteligência. Caso se medite apoiado nesses três aspectos, de modo muito vasto, muito amplo – praticando-se a pacificação mental, a visão superior ou as fases de criação e de conclusão das divindades do Vajrayana – isto produzirá um grande conforto, uma grande facilidade e aumentará a eficácia. Se, ao contrário, permanecermos na nossa percepção comum: “Este sou eu, eu estou nesse corpo”, as mesmas práticas serão realizadas com dificuldade, de maneira estreita, como se estivéssemos presos num desfiladeiro estreito do qual não saberíamos como sair. Portanto, é muito importante saber meditar da maneira que acabamos de mostrar.

Mesmo quando o lama que dá as instruções sobre a pacificação mental, a visão superior ou as meditações das divindades seja perfeito, se o discípulo abordar essas técnicas com a mente fechada em si mesma, nunca verá o desenvolvimento das qualidades que delas decorrem. Ao contrário, corre um grande risco de se irritar por causa do lama e de ficar ressentido com ele!

Essa mente, união da vacuidade, da claridade e da inteligência, vai em direção ao estado de buddha; mas é ela também que erra no samsara. Quando meditamos, é a mente que medita; quando se elevam emoções conflituosas ou pensamentos, é ela que os experimenta. Nada é experimentado fora da mente.

A mente em pleno vôo

Caso se medite tendo compreendido bem essa tríplice natureza – vacuidade, claridade e inteligência – da mente, medita-se com a liberdade de um pássaro que voa no céu. Nada obstrui a sua rota; pode ir aonde quiser. Nossa meditação será, então, eficaz. Caso contrário, seremos como uma criatura com muitas patas presa num espaço muito pequeno.

Durante a meditação, algumas pessoas sentem dor de cabeça, outras dor nos olhos, nos ombros, ou ainda sentem incômodos em outras partes do corpo. Todas essas dores vêm de uma mente em uma atitude fechada.

Podemos comparar nossa mente dotada desses três aspectos com o mar. As emoções conflituosas e os pensamentos que nela se produzem são como as ondas. As ondas do mar são muito numerosas; mas elas são apenas água, a mesma água do mar. Do mesmo modo, todos os pensamentos e todas as emoções procedem da mente e se reabsorvem na mente. Pode ser útil meditar na beira do mar: pode-se ver, vindo de longe, pequenas ondas que se formam, que depois crescem até ficarem enormes e parecerem capazes de destruir tudo em sua passagem. As ondas voltam em seguida para o mar e não sobra nada delas. As emoções e os pensamentos, do mesmo modo, elevam-se em nossa mente, ganham um enorme poder e acabam por voltar para a vacuidade não sobrando nada deles. Depois surgem outros, que por sua vez se dissipam, para dar lugar a outros.

Sejam, então, hábeis ao meditar. Quando, por exemplo, um desejo poderoso, quase irresistível, eleva-se na mente, tomem a postura de meditação e permaneçam em um estado de grande abertura. Quando o desejo se elevar, olhem simplesmente a mente neste desejo que se eleva, sem se deixarem distrair por outra coisa; o desejo se liberará então por si mesmo na vacuidade. Cada vez que ele voltar, olhem-no da mesma maneira e cada vez ele se desfará. Ao meditar assim, o desejo se libera na consciência primordial. A partir de então as próprias manifestações das emoções serão benéficas e não poderão mais incomodá-los.

Reconhecer a essência

Tentemos, agora, fazer a experiência da qual falamos. Tomando a postura de meditação correta, deixemos que nossa mente repouse na vacuidade, na claridade e na inteligência. Sem dúvida, irão surgir pensamentos de desejo, de cólera ou de ciúme. Quando se manifestarem, permaneçamos com relação a eles em um estado de simples reconhecimento. Não devemos pensar que devem desaparecer ou que é preciso pará-los, mas simplesmente reconhecer sua essência. Desse modo eles se liberam por si mesmos.

(meditação)

Nesse tipo de meditação, todas as emoções conflituosas são tratadas do mesmo modo. Mesmo quando se elevam em grande número, é uma boa coisa. Não se deve rejeita-las. Basta reconhecer sua essência; isto não é difícil. É por essa razão que dizemos que elas se liberam por si mesmas.

A emoção principal que vocês encontram é, sem dúvida, o desejo-apego. Se puderem aprender a tratá-la mediante esse tipo de meditação, poderão em seguida estender essa abordagem às outras emoções. Gampopa comparava a meditação a um fogo; quanto mais se alimenta o fogo com madeira, mais potente e vivo ele se torna. Para o praticante, da mesma maneira, quanto mais a meditação encontra emoções conflituosas, mais forte brilha a consciência primordial.

Quando, após o trabalho, vocês se sentem cansados, mental e fisicamente, se estabelecerem a mente nesse estado aberto e espaçoso do qual falamos, o cansaço logo desaparecerá; vocês se sentirão relaxados e tranqüilos. Quando, por outro lado, uma forte emoção conflituosa se eleva, se, do mesmo modo, vocês colocarem a mente em um estado semelhante ao espaço, a emoção se liberará por si mesma. Isso será extremamente proveitoso.

Em primeiro lugar, é preciso compreender bem no que consiste esse tipo de meditação, depois aplica-la. Antes de mais nada, talvez não seja tão fácil compreendê-la como falar dela; depois, tendo compreendido-a, se não se praticá-la, não se poderá extrair nenhum benefício dela. Logo após ter alcançado o Despertar, o buddha disse:

Encontrei um dharma semelhante à ambrósia,
Profundo, pacífico, simples, indiviso, radiante.
Como ninguém compreenderia o que eu poderia mostrar,
Permanecerei mudo no meio da floresta.

Então, ele permaneceu absorvido em sua meditação. Algumas semanas mais tarde, os grandes deuses da Índia védica, Brahma e Indra, vieram lhe implorar para que ensinasse aos homens que, sem ninguém para guiá-los, eram como cegos no samsara. Atendendo a esse pedido, aceitou ensina-los.

Questão: Essa prática, na qual as emoções se liberam por si mesmas, é suficiente para chegar ao Despertar?


Kalu Rinpoche: Sim, é possível, pois ela permite que as emoções se transformem em sabedorias, mais precisamente naquilo que, no nível do Despertar, é chamado as “cinco sabedorias” e que, no nível dos meios, é representado pelos cinco “buddhas Patriarcas”.

Questão: Rinpoche explicou-nos que as emoções se elevavam da mente e voltavam para ela. Mas, quando penso em minha própria experiência, não vejo muito bem, nesse caso, o que se chama mente. É apenas uma palavra, mas que não designa nada em particular. Acredito ter uma mente, mas não posso encontra-la.

Kalu Rinpoche: Para responder a essa questão, podemos tomar uma citação do Terceiro Karmapa, Rangjung Dorje:


A mente: não há mente, ela é vazia de essência mental;
Vazia, ela é ao mesmo tempo livre e se manifesta em todas as coisas.
Possa um perfeito exame eliminar toda indecisão.

E ainda:

A mente não é existente: os próprios Vencedores não a vêem;
Ela não é inexistente: é o fundamento universal do samsara e do nirvana;
Ela não é o amálgama de contrários, mas a união, o caminho do meio;
Possa eu realizar o aquilo-mesmo da mente desprovida de extremos.

Forneci-lhes os métodos que, acredito, permitem que toda vez que se produzam emoções conflituosas, pensamentos ou sofrimentos, eles se liberem por si mesmos. Agora, depende de vocês coloca-los em prática ou não. Vocês podem escolher permanecer enredados nas emoções conflituosas ou então livrar-se delas. A escolha é sua: podem continuar prisioneiros ou colocar-se em uma situação confortável, deixando que as emoções liberem-se por si mesmas.

Kalu Rinpoche. Ensinamentos Fundamentais do Budismo Tibetano. Brasília: Shisil, 2000.

Fonte: http://www.dharmanet.com.br/bhavana/emocoes.htm

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